domingo, 27 de maio de 2012

-SAUDADES DE MOMENTOS-

Olhando o calendário hoje, lembrei que é aniversário de falecimento do meu primeiro amigo de verdade.

Fabrício teve sua vida encerrada após um acidente de carro quando voltava de Cabo Frio/RJ com sua namorada Clara.

Pra mim uma perda dolorosa. Até hoje, quando me lembro dos momentos vividos ao seu lado, e foram vários: Carnabelô, Show do cantor Netinho com direito a suborno ao segurança para deixar entrarmos no evento com a sua irmãnzinha que na época tinha apenas 3 anos de idade e várias outras histórias como essa que vou descrever agora.

Na época de escola, me lembro que rolou uma atividade da aula de artes que era fazer um comercial. Os alunos tinham que criar um produto e em seguida, criar uma propaganda para ilustrar o produto.

Lembro que quando ouvi aquilo, um sonho se criou na minha mente. Era a minha grande chance. Eu faria algo incrível, tão impressionante e realista que deixaria toda a escola, a cidade e talvez até o país boquiaberto. Eu seria descoberto e aclamado como um dos maiores diretores mirins do mundo. George Lucas e Steven Spielberg pagariam tributos para trabalhar comigo.

Aquela era a chance que eu esperava, para mostrar que não era só um moleque qualquer que era péssimo em Matemática. Eu me vingaria de todos que debochavam de mim, quando eu tirava nota baixa nas provas. Eu mostraria a eles o meu valor. Eu seria enfim alguém. O maior diretor de cinema de todos os tempos!

Com desprezo olhei meus amigos se articulando em grupinhos. Pobres mortais.

Olhei ao meu redor e percebi – pela primeira vez com grande satisfação – que apenas o Fabrício que era meu amigo inseparável queria fazer o trabalho comigo. Nós estávamos avulsos.

Avulsos como eu queria!

Enquanto os meus amigos faziam carros que voavam, prédios submarinos e toda sorte de produtos idiotas e improváveis, eu resolvi criar um produto que fosse factível. Eu sabia que os motoristas de caminhão tomavam remédios para emagrecer, visando o efeito colateral, a insônia desgraçada que os famosos “arrebites” causam. Após pesquisar o cotidiano dos motoristas de caminhão, eu soube que eles dirigiam muitas horas, em uma jornada de trabalho insana, sem descanso. Muitos deles tomavam café com coca-cola, outros mascavam chicletes, tudo para espantar o sono.

Eu vi nesse problema um mercado potencial (que ainda existe) para um chiclete que não deixava a pessoa dormir. Na fórmula, uma série de excitantes do sistema nervoso deixariam a pessoa acordada. Escrevi praticamente uma bula de remédio e submeti ao professor, como uma prévia do que ele poderia esperar.

Sim, o trabalho era pra ser feito por mim e pelo Fabrício, mas ele nunca fez nada, apenas assinava os trabalhos no final.

Mas voltando ao assunto, o professor adorou minha ideia e aprovou o meu produto. Começava então a fase da campanha. O filme, que enfim, me deixaria famoso.

Ao ver que tinha um produto que não deixava a pessoa dormir, eu percebi que o caminho mais fácil seria usar o tio Freddy como garoto propaganda:


Freddy era simpático (à sua própria maneira, claro) e era suficientemente bem humorado-cretino para vender um chiclete à prova de sono. Foi aí que começou a megalomania, o problema de sempre.

Enquanto os meus colegas da turma se contentavam em cartazes de cartolina, e maquetes de espuma e isopor, eu resolvi fazer um comercial “de verdade”, para a TV. O meu plano incluía contratar Robert Eglound, e com ele, fazer um vídeo divulgando o meu chiclete.

Após muito trabalho (não existia internet ainda, ou pelo menos disponível para nós, mortais alunos) descobri numa antiga edição da revista SET o endereço de um estúdio em Los Angeles. Eu entrei em contato com o estúdio tentando – olha o grau insano de inocência do demente! – um contato direto com Robert Eglound, o ator que interpretava o Freddy Krueger. É óbvio que esta abordagem não funcionou. Até hoje estou sem respostas deles.

Vendo que o prazo se aproximava, eu busquei ajuda no único lugar que era possível: Em casa mesmo. Ou na minha ou na de Fabrício, onde achei justo ser na casa dele, pelo menos essa poderia ser a participação dele no trabalho. Por sorte, a mãe dele tinha um casaco listrado igual ao do Freddy. As linhas que deveriam ser pretas eram cinza, e um pouco mais estreitas, mas eu pensei que talvez fosse possível resolver isso colocando uma gelatina feita de papel celofane na frente da câmera.

Eu levei uns dois dias construindo a luva. E ficou bastante parecida. Faltava o chapéu.

Vendo meu perrengue, o Fabrício e sua mãe saíram comigo por Belo Horizonte em busca de um chapéu para o Freddy. Dona Marta, mãe de Fabrício era mestre em apoiar as minhas maluquices. Andamos um dia inteiro pelo centro de BH e quando achamos, compramos na hora.

O chapéu que mais parecia com o do Freddy era um modelo PRADA. (pode imaginar a facada que foi?)

Aquilo acabou com TODO o orçamento da minha produção. Meus planos de contratar o dublador oficial do Freddy Krueger no Brasil foram para o ralo. Também não havia dinheiro para conseguir um ator.

O jeito foi convencer a Dona Marta a virar o Freddy Krueger. Poucas mães do mundo se prestariam ao que ela fez. Foram seis horas ininterruptas de maquiagem, na qual eu converti a mãe de Fabrício no monstro da série “A hora do pesadelo”.

Para fazer a maquiagem eu usei toneladas de algodão com goma laca. O acabamento foi feito usando base de maquiagem e corantes alimentícios. Infelizmente, não havia câmera digital nesta época, a máquina de fotos da casa de Farício vivia sem filme, e não há registros do resultado, mas eu asseguro a vocês que foi um dos trabalhos de maquiagem mais complexos que eu fiz na vida. Quando acabamos o trabalho de maquiagem, não era mais a Dona Marta. Era o Freddy! Até hoje, quando me lembro, me impressiono da forma realista que ficou.

Dona Marta amarrou uma espécie de fita sobre os seios, sumindo com eles. Ficamos treinando um pouco e olhando de longe, era absolutamente impressionante o resultado. O celofane vermelho na frente da câmera (color correction de pobre) deu certinho como eu queria.

O problema todo era a questão da voz, pois por mais que ela tentasse fazer uma voz de Freddy Krueger, tava claro que era a mãe do Fabrício, ou no máximo um Freddy Krueger Gay.

A solução de última hora foi selecionar trechos aleatórios das falas do monstro no filme. Gravei com meu aparelho de som e montei usando fita cassete. No final, estávamos com frases (que não significavam nada) com a voz do Freddy original.

A ideia era essa. Dona Marta dublaria, e depois eu colocaria uma legenda com o texto do comercial.

Aí veio o problema. Dona Marta não conseguia dublar aquela porra nem pelo cacete. Ela começava bem, mas no meio da frase desatava a errar a mímica e saia a voz quando ela tava de boca fechada, hahaha. Quando ela finalmente acertou, fez um movimento com a luva e uma das garras saiu voando.

E foi assim, filmando continuamente, uma cena atrás da outra, sem claquete (porque eu nem sequer sabia que isso existia) para tentar achar uma versão em que o meu “Freddy” acertasse.

Dona Marta foi atriz de teatro, então pra ela não era difícil pegar o jeitão do Freddy. O duro era casar a interpretação dela com o Freddy pré gravado.

Foram umas vinte versões. Em nenhuma a Dona Marta conseguia acertar a interpretação do Freddy. Quando ela finalmente pareceu acertar, deu uma puta duma desmunhecada e ficou um “Freddy Krueger GLS”.

O mais hilário era que a cada erro eu gritava: Porraaaaaaaa!

Então era um troço que ficava assim: “Porra! – vai. Porraaaa! – vai, ação! Porraaaa…”

No fim, o chapéu estourou totalmente o orçamento e isso jogou por terra a minha pretensão de editar o vídeo, colocar a legenda e mandar dublar nos estúdios Ebert Richers.

Eu me senti um fracassado completo. O dia da apresentação chegou. Meus amigos estavam com seus cartazes e maquetes bobas de espuma e isopor… E eu era um idiota que não tinha nada além de um vídeo de um Freddy Krueger gay ejetando navalhas ao som de um “porraaaaaa”.

O Fabrício??? Não, ele não foi a aula nesse dia.

Mas antes o risco de uma nota baixa, levei o vídeo para mostrar ao professor, na inútil tentativa de que, ao me ver humilhado, ele tivesse compaixão e me desse uma nota mínima, me deixando de lado na apresentação.

Naquele dia, na hora em que bateu o recreio eu fui procurar o professor de artes. Encontrei-o na sala de artes, arrumando tudo.

Pedi licença para ter uma conversa com ele.

Ele veio sério, com cara de que iria ouvir o clássico “o cachorro comeu meu trabalho”. Mas eu contei a verdade dos fatos. Era importante pra mim, expor meu fracasso previamente para não arriscar a pele em um novo vexame coletivo para toda a escola.

Ao ouvir minhas justificativas para o fracasso, o cara apenas ria. Eu não entendi aquilo. Achei que ele era retardado ou coisa parecida, pois eu estava li, diante dele, contando toda a minha desgraça de não conseguir contratar o ator de Hollywood, tendo que usar a mãe de um amigo, gastando todo o dinheiro de meses de merenda num chapéu idiota e não podendo editar nem dublar e legendar o material bruto e o babaca apenas ria. E em seguida perguntava: “Você tá falando sério?”

Eu falei que sim. Ele ficou mais sério e disse que queria ver a fita. Meio sem graça eu peguei a fita na mochila e trêmulo, estendi pra ele. Ele guardou e me liberou para voltar ao recreio.

Quando acabou a aula de Geografia, me lembro como se fosse hoje, chegou a hora da aula de artes. Todo mundo empolgado de mostrar seus comerciais. Algumas meninas até ensaiaram um teatrinho tosco lá.

Eu fui, na esperança de que, à aquela altura, o professor me olharia com piedade e conteria sua ânsia de me reprovar.

Logo que eu entrei na sala, dei de cara com um monolito negro no centro da sala de artes. Gelei. O monolito negro era uma pequena caixa com rodas, onde havia uma espécie de gaveta de onde podia se ver um videocassete. E acima, no interior de um compartimento fechado com chave, estava uma enorme TELEVISÃO.

Nunca me senti tão ferrado na vida quanto no dia que me deparei com o monolito de vídeo do professor. Aquilo só poderia significar uma coisa. Algo seria exibido em vídeo para os alunos.

Tentei me acalmar, pensando que talvez alguém tivesse a ideia de gravar seus comerciais de espuma e isopor em casa.

Afinal, câmera de VHS era algo caro, mas que muita gente tinha.

O professor nem olhava pra mim. Ele foi chamando e um a um, os grupinhos foram expondo seus comerciais. Tinha de tudo: carro que mudava de cor, avião que virava submarino… Eu fui ganhando confiança quando vi que o professor havia me pulado.

Quando tudo parecia ter terminado… Alguns já até levantavam para sair, o professor mandou todo mundo sentar em roda ao redor do aparelho de TV e vídeo. E eu comecei a sentir que “a hora do pesadelo” era um nome apropriado para aquele meu projeto.

O professor me chamou lá na frente. Me senti um peixe. Foi como se um anzol invisível agarrasse meu pulmão e me tirasse fora da água. tentando não pensar na situação, me levantei e dei alguns passos vacilantes em direção ao professor.

Ele apontou pra mim e disse ao pessoal: “Olha, turma. Este é o trabalho do Doug.”

Me senti traído. Eu só queria que ele mantivesse aquela porcaria em segredo, mas ao contrário ele expôs para todo mundo ver.

Os alunos se espantaram de ver o making-off (não se chamava making-off, era a câmera que eu ligava de vez em quando enquanto maquiava Dona Marta) e à media em que ela ia tendo a cara coberta de cola, algodão e base de maquiagem, eu vi os olhares ficando cada vez mais arregalados.

Se naquele colégio alguém ainda tinha duvidas da minha sanidade, aquele vídeo acabava com toda e qualquer duvida.

Após a sessão de maquiagem. O professor pausou o vídeo e fez uma mini-entrevista comigo. Perguntou da ideia, perguntou do projeto como um todo, até da ausência do Fabrício na apresentação do trabalho. Eu explicava, reticente, aquilo tudo que havia falado para ele antes. Eu disse que queria contratar o ator de Hollywood… Todo mundo ria. Eu dizia que ia fazer a dublagem nos estúdios Ebert Richers. Todo mundo ria. Eu explicava a coisa da luva, do chapéu, do estouro o do orçamento, e todo mundo ria.

Eu não estava entendendo nada, afinal, não vai nada de engraçado naquela merda. Eu queria fazer o troço sério. Quando eu disse que meu plano era mandar pro Steven Spielberg. Aí neguinho já tava chorando de rir.

Eu ri amarelo também, mais para não parecer um babaca do que qualquer outra coisa.

O professor avisou que era para o pessoal prestar atenção e tascou o dedão no play e vimos as vinte versões do comercial que nunca deu certo.

A cada versão, neguinho se escangalhava mais de rir. O “Pooorraaaa” virava um bordão e cada vez que ele surgia, sempre no fim do vídeo, mais a galera ia ao delírio.

No final, eu estava bem sem graça. E todo mundo morrendo de rir. O professor voltou a falar, limpando as lágrimas.

Disse que estava feliz, e que não acreditava que alguém fosse levar tão a sério a proposta.

Me devolveu a fita e mandou todo mundo bater palmas. Novamente fiquei sem graça. Eu queria sumir e a porra dos aplausos nunca acabavam.

Anos depois, Dona Marta que é advogada exclusiva da Fiat Automóveis em uma conversa informal num jantar empresarial conversando com um colega de trabalho e sua filha, a menina contou que havia visto um vídeo na escola uma vez de um cara que maquiava a cara da mãe do amigo. Foi assim que descobri que o professor tinha feito uma cópia do meu video e que todo ano passava para os alunos. Se bobear, ele passa isso até hoje.

Quando a menina disse isso, Dona Marta não se conteve e contou que o Freddy Krueger era ela.

Daí uns dias depois, esse funcionário da Fiat pediu demissão..., hahahaha. Por que será?

Saudades eternas do meu amigo Fabrício e meu eterno agradecimento a Dona Marta que sempre me recebeu tão bem em sua casa e sempre topou fazer parte das idéias malucas que eu e Fabrício tínhamos.


Doug
Nada Como Viver!!!
27 de maio 2012